quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Você é, eu sou

 

“Humano, demasiado humano”. “O homem é essencialmente mau”. Duas frases marteladas por Nietzsche e Hobbes. Para esses filósofos somos essencialmente maus, nascemos cruelmente inatos. A sociedade com suas regras, leis, religiões, sistemas morais, nos retira a barbárie e nos civiliza.

              Pois bem, então já que somos todos maus, estamos apenas fingindo bondade para viver confortavelmente em sociedade? Não, não é bem assim. Para Nietzsche, nós não temos consciência de nossa maldade, nos acreditamos bons, pois somos guiados por regramentos, sobretudo da religião, que nos diz que passos seguir e assim seremos bons, seremos recompensados, caso contrário, iremos para o inferno, seremos maus.

              Severino, um homem bondoso, vai à missa todos os domingos, paga o dízimo fielmente, faz caridade, é fiel à esposa, trabalhador, sustenta sua família, portanto, um homem bom. Ele também fica feliz em ver vídeos de pessoas sendo torturadas na internet, comemora a morte de crianças pretas, pois já previu que ia crescer e virar bandido mesmo. Ele é contra políticas de bem-estar social, como bolsa família, cotas para negros e pessoas com deficiência. Fica extremamente irritado quando vê notícias sobre o assunto e é capaz de acreditar nas mais esdrúxulas notícias quando vai de encontro com suas ideias e valores.

              Marieta, uma mulher bondosa, vai ao culto toda semana, participa de projetos sociais, serve sopão todo sábado, boa mãe, boa esposa, cuida da casa, cuida da aparência, defende uma alimentação saudável e exercícios, uma boa mulher. Marieta, assim como Severino, odeia políticas públicas distributivas, faz campanha contra o aborto, mas ignora crianças já nascidas, inclusive comemora quando a polícia invade a favela e quando mata criança, explica que é apenas dano colateral. Ela odeia feministas, ensina seus filhos que ser homossexual é pecado, mas que respeita?!

              Severino e Marieta são pessoas benquistas na sociedade, são mães e pais queridos, são tias e tios queridos, são irmãos adorados. Pessoas respeitáveis, direitas, trabalhadoras, bem-sucedidas. São cidadãos de bem.

              Porém, Severino e Marieta, são incapazes de enxergar a maldade em si mesmas. Se indagados sobre ser a favor de tortura, explicam que o são devido a uma questão de justiça, afinal, o bandido mereceu. Se perguntamos o porquê de perseguir o outro, responderão que estão tentando proteger os seus, afinal, sua família, seus filhos, seus amigos não precisam e não podem vivenciar um mundo tão deturpado, estão apenas limpando o ar, higienizando o ambiente, tentando fazer do mundo um lugar melhor.

              Afinal, quem consegue enxergar a maldade de Severino e Marieta se eles mesmo não enxergam? O outro. O inferno são os outros disse Jean-Paul Sartre. O outro sabe que Severino e Marieta são essencialmente maus, que a perseguição a empregada, que a humilhação ao subordinado, que a falta de empatia, os jogos de poder são oriundos da maldade humana, ela é que demasiada humana.

              Jean-Jacques Rouseau propõe uma visão diferente: o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Sendo assim, Severino e Marieta são apenas fruto do meio. Esse desejo mórbido de ver o outro em maus bocados foi aprendido. Se eles tivessem sido criados por uma família amorosa, empática, respeitosa e que sente compaixão pelo outro, talvez não teriam tais sentimentos ou não teriam tais ações.

              As ciências humanas ainda não encontraram uma resposta definitiva. O que temos são defensores de uma proposta ou de outra. Além disso temos também os defensores da importância da genética no comportamento humano.

              Eu particularmente acredito em um pouco de cada, uma visão pessoal mesmo, baseada no senso comum e vulgar. Entretanto, acredito que temos a capacidade de ver além. A filosofia tem grande importância nesse olhar mais aguçado sobre nós mesmos. O papel da filosofia é martelar. Martelar o oco e a escuridão da falta de reflexão e autorreflexão. Martelar a escuridão para iluminar com questionamentos. Imaginem então um martelo batendo forte em suas cabeças!! Deve doer né? É assim a filosofia, martelar e fazer doer, bater forte para fazer você enxergar o que estava escondido.

              Se nascemos bons e fomos corrompidos ou se já nascemos maus, não interessa muito nessa reflexão. A honestidade das ideias, a consciência, a iluminação de olharmos para dentro de nós mesmos com uma lamparina, como instiga Diógenes, o cínico, e enxergarmos muito além do bem e do mal, isso sim interessa.

              Quem combate monstros precisa tomar cuidado para que isso não o torne um monstro. Se você olha muito tempo para dentro do abismo, o abismo também começa a olhar dentro de você. Friedrich Nietzsche.