domingo, 22 de dezembro de 2024

Retrospectiva de leituras 2024

 Eu nunca tive o hábito de ler. A literatura surgiu em minha vida praticamente no fim da adolescência por influência das amigas. Mas desde que tive o primeiro contato com a imensa dimensão do mundo literário, me apaixonei, lia o que tivesse. Gostava de algumas leituras e de outras mais ou menos. Mas sempre lendo. 

Tenho até hoje anotações dos livros que li na minha adolescência, livros clássicos que pedia emprestado na biblioteca. Não, nunca foi exigência da escola para o vestibular, na minha época a escola não estava atenta a esse detalhe.

Quando engravidei de Mariana, devido ao cansaço próprio da gravidez, praticamente parei de ler. Depois que ela nasceu então, não li mais nada. Depois de uns dois anos, fui voltando aos poucos. 

Parar esse tempo me fez experimentar a secura da vida normal e cotidiana do adulto, costumo brincar dizendo que sai da adolescência quando Mari nasceu. Talvez tenha sido isso, abandonei um pouco da inocente viagem que fazia através da leitura. 

Com a pandemia, a secura aumentou significativamente, era realidade nua e crua demais para uma pessoa um tanto pessimista e sonhadora ao mesmo tempo.

Em 2022 quis forçar voltar o hábito da leitura colocando uma meta de 12 livros por anos. Desde então não parei mais. De lá pra cá a minha cabeça rodopiou varias vezes. Mergulhei em reflexões do mais profundo âmago, com Clarice Lispector, enxerguei por olhos e vivências que não eram minhas e chorei com Conceição Evaristo, dei risada com humor de Douglas Adams, viajei pela segunda guerra mundial por olhos que não podiam enxergar com Anthony Doerr, me revoltei e me entristeci com a visão de mundo de Byung-Chul Han, aprendi um tanto de escuta com Platão e outro tanto de estoicismo com Sêneca, Marco Aurélio e Epicteto. Lembrei-me da realidade sertaneja/agrestina em que coexisto e que permeia minha vivência e meu jeito de estar no mundo com Graciliano Ramos. Fiquei encantada com a pesquisa sobre feminismo de Valeska Zanello, conheci o percurso que fez Simone de Beauvoir até chegar a ser precursora do feminismo e da filosofia existencialista, viajei para história política do Chile com um romance de tirar o fôlego com Isabel Allende e por fim redescobri com Rosa Montero que estar lúcida demais não é nada saudável para quem tem um espírito de viajante. 

As pessoas mais práticas devem se perguntar: mas esses livros serviram para o que? Qual foi o rendimento obtido? Ajudou profissionalmente? Ajudou pessoalmente? Afinal, tudo que fazemos deve ser monetizado não é? Pois bem, não é pra ter serventia, inclusive algumas leituras me tiraram até o prumo das ideias. A leitura é para viajar para além de mim e conversar todo dia um pouquinho com essas mentes geniais, e me ensinar a não me contentar com a secura da vida, e abenxergar um certo charme em tudo, em observar o mundo de tantas lentes. E saber que temos uma espécie de refúgio, uma Pasárgada onde você é amiga do Rei.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

O idealista e o coveiro

Você é idealista? Bem, eu sou, possuo em mim um vasto mundo, dentro de mim o mundo das ideias é engendrado e sofre querendo ser gestado e parido.

Dentro desse mundo ideal, as pessoas são honestas, com os outros e consigo mesmas, são empáticas, sim elas conseguem olhar o outro através de olhos que não são seus, de vivências que não são suas, de costumes e culturas diferentes das quais aprendeu em seu meio.

Nesse mundo das ideias, além das contidas e inseridas conforme o meio, existem as inseridas através das leituras, não só leituras de letras escritas, palavras em livros, mas leitura de mundos, diversos outros mundos das ideias de outros diversos seres cheios de ideias gestadas e paridas.

Djamila Ribeiro diz em seu livro Pequeno Manual Antirracista “Fala-se muito em empatia, em colocar-se do lugar do outro, mas empatia é uma construção intelectual, ética e política”, então no meu mundinho das ideias a empatia não se alcança quando digo que sou empático, mas quando enxergo que não sou e tento conhecer, enxergar esses tantos mundos e me colocar como aprendiz de mundos.

Mas voltando ao mundo do idealista, ele se enche de coisas, o idealista ler livros sobre um mundo melhor, não um mundo melhor para ele, mas para todos, e ele não sente pena dos outros, ele sente pena de si mesmo e de sua ignorância, ele adentra em outros mundos como mero expectador, ele ler as linhas escritas de Simones, Djamilas, Bells, Conceições, Valeskas, Isabeis, Clarices, Machados, Joses, Chicos, Vivianes, Itamares, Andrews, dentre tantos outros mundos possíveis, e ele se vê pequeno, um mundo bem pequenininho, sem alcance, sem visão, sem ideias gestadas e paridas, só ideias.

Mas ele, a partir de tantas outras ideias imagina um mundo colocando em prática todas as ideias de tantos mundos das ideias de tanta gente genial e cheias de ideias, e ele faz igual Jonh Lennon e sonha, escreve e faz uma música. Daí outros idealistas gostam da letra, cantam a música e sonham juntos e gestam e dão a luz a novas ideias, boas ideias.

Mas tem lugares que não dá para ser idealista, tem lugares, que são iguais ao filme o poço. Aliás, sinto dizer que tem lugares para ser idealistas, todos os outros não dão pra ser. Sobra poucos lugares para os idealistas, a poesia, a música, a literatura, a filosofia. Os demais lugares estão ocupados em suprimir ideias, em enterrar ideias e enterrar pessoas também, se essas têm ideias demais da conta.

Aos idealistas um conselho: não se demorem em lugares e pessoas tipo coveiro, eles são especialistas em enterrar pessoas, expectativas, sonhos, músicas de Elton Jonh, livros de Conceição Tavares, mundos diferentes, olhares empáticos, visões de mundo além do necessário.

            Lugares e pessoas tipo coveiro, não são idealistas, aliás, um dia foram, quando crianças, mas foram engolidas por lugares e pessoas tipo coveiro. Pessoas não idealistas, ao contrário odeiam o mundo das ideias, gostam do mundo prático: Não serve? não vai dar lucro? não vai produzir? A amizade não serve de networking? não terá algum retorno? Atrapalha o caminho? Ok, então joga fora e descarta. O mundo do não idealista não é para ser vivido, degustado, é para suprir necessidades. O não idealista, confundo muito com pessoas narcisistas, mas nem sou psicóloga para fazer diagnostico, então, prefiro chama-lo de pessoa tipo coveiro, ele só serve para fazer o necessário e as vezes o necessário é só enterrar. 

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Você é, eu sou

 

“Humano, demasiado humano”. “O homem é essencialmente mau”. Duas frases marteladas por Nietzsche e Hobbes. Para esses filósofos somos essencialmente maus, nascemos cruelmente inatos. A sociedade com suas regras, leis, religiões, sistemas morais, nos retira a barbárie e nos civiliza.

              Pois bem, então já que somos todos maus, estamos apenas fingindo bondade para viver confortavelmente em sociedade? Não, não é bem assim. Para Nietzsche, nós não temos consciência de nossa maldade, nos acreditamos bons, pois somos guiados por regramentos, sobretudo da religião, que nos diz que passos seguir e assim seremos bons, seremos recompensados, caso contrário, iremos para o inferno, seremos maus.

              Severino, um homem bondoso, vai à missa todos os domingos, paga o dízimo fielmente, faz caridade, é fiel à esposa, trabalhador, sustenta sua família, portanto, um homem bom. Ele também fica feliz em ver vídeos de pessoas sendo torturadas na internet, comemora a morte de crianças pretas, pois já previu que ia crescer e virar bandido mesmo. Ele é contra políticas de bem-estar social, como bolsa família, cotas para negros e pessoas com deficiência. Fica extremamente irritado quando vê notícias sobre o assunto e é capaz de acreditar nas mais esdrúxulas notícias quando vai de encontro com suas ideias e valores.

              Marieta, uma mulher bondosa, vai ao culto toda semana, participa de projetos sociais, serve sopão todo sábado, boa mãe, boa esposa, cuida da casa, cuida da aparência, defende uma alimentação saudável e exercícios, uma boa mulher. Marieta, assim como Severino, odeia políticas públicas distributivas, faz campanha contra o aborto, mas ignora crianças já nascidas, inclusive comemora quando a polícia invade a favela e quando mata criança, explica que é apenas dano colateral. Ela odeia feministas, ensina seus filhos que ser homossexual é pecado, mas que respeita?!

              Severino e Marieta são pessoas benquistas na sociedade, são mães e pais queridos, são tias e tios queridos, são irmãos adorados. Pessoas respeitáveis, direitas, trabalhadoras, bem-sucedidas. São cidadãos de bem.

              Porém, Severino e Marieta, são incapazes de enxergar a maldade em si mesmas. Se indagados sobre ser a favor de tortura, explicam que o são devido a uma questão de justiça, afinal, o bandido mereceu. Se perguntamos o porquê de perseguir o outro, responderão que estão tentando proteger os seus, afinal, sua família, seus filhos, seus amigos não precisam e não podem vivenciar um mundo tão deturpado, estão apenas limpando o ar, higienizando o ambiente, tentando fazer do mundo um lugar melhor.

              Afinal, quem consegue enxergar a maldade de Severino e Marieta se eles mesmo não enxergam? O outro. O inferno são os outros disse Jean-Paul Sartre. O outro sabe que Severino e Marieta são essencialmente maus, que a perseguição a empregada, que a humilhação ao subordinado, que a falta de empatia, os jogos de poder são oriundos da maldade humana, ela é que demasiada humana.

              Jean-Jacques Rouseau propõe uma visão diferente: o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Sendo assim, Severino e Marieta são apenas fruto do meio. Esse desejo mórbido de ver o outro em maus bocados foi aprendido. Se eles tivessem sido criados por uma família amorosa, empática, respeitosa e que sente compaixão pelo outro, talvez não teriam tais sentimentos ou não teriam tais ações.

              As ciências humanas ainda não encontraram uma resposta definitiva. O que temos são defensores de uma proposta ou de outra. Além disso temos também os defensores da importância da genética no comportamento humano.

              Eu particularmente acredito em um pouco de cada, uma visão pessoal mesmo, baseada no senso comum e vulgar. Entretanto, acredito que temos a capacidade de ver além. A filosofia tem grande importância nesse olhar mais aguçado sobre nós mesmos. O papel da filosofia é martelar. Martelar o oco e a escuridão da falta de reflexão e autorreflexão. Martelar a escuridão para iluminar com questionamentos. Imaginem então um martelo batendo forte em suas cabeças!! Deve doer né? É assim a filosofia, martelar e fazer doer, bater forte para fazer você enxergar o que estava escondido.

              Se nascemos bons e fomos corrompidos ou se já nascemos maus, não interessa muito nessa reflexão. A honestidade das ideias, a consciência, a iluminação de olharmos para dentro de nós mesmos com uma lamparina, como instiga Diógenes, o cínico, e enxergarmos muito além do bem e do mal, isso sim interessa.

              Quem combate monstros precisa tomar cuidado para que isso não o torne um monstro. Se você olha muito tempo para dentro do abismo, o abismo também começa a olhar dentro de você. Friedrich Nietzsche.